Por Bruno Bonsanti
Na semana do sorteio da fase de grupos da próxima Champions League, a Uefa anunciou mudanças importantes na estrutura da competição. Foi o resultado final de negociações com os principais clubes europeus, que ameaçavam criar um torneio paralelo. O que a entidade chama de ”evolução” é, na verdade, apenas mais uma maneira de deixar tudo como está. Ou enriquecer ainda mais os que já são muito ricos.
O que muda?
A partir da temporada 2018/19, pelo menos até a de 2020/21, as quatro ligas mais bem colocadas no ranking da Uefa terão quatro vagas diretas na fase de grupos da Champions League. Isso é uma mudança importante porque, atualmente, Espanha (1ª colocada no ranking), Alemanha (2ª) e Inglaterra (3ª) classificam três times automaticamente e colocam mais um na rodada de playoffs. A Itália (4ª), por sua vez, manda duas equipes para os grupos e outra para os playoffs.
A Uefa também anunciou que o campeão da Liga Europa entrará diretamente na fase de grupos, que o histórico dos clubes será levado em conta no cálculo do coeficiente – o que deve ter influência nos cabeças de chave do sorteio da fase de grupos – e que a distribuição de dinheiro será reforçada, privilegiando mais o mérito esportivo do que o potencial de marketing.
Será criada uma empresa subsidiária que “desempenhará um papel estratégico” na tomada de decisões e na administração das competições de clubes. Metade dos diretores dessa empresa será indicada pela Uefa. A outra metade pela Associação de Clubes Europeus.
As rotas do Campeão (só com os times campeões de suas ligas) e da Liga (com os times classificados sem terem sido campeões) nas fases preliminares da Champions League foram mantidas, assim como o número total de clubes a partir da fase de grupos: 32. O mesmo acontece na Liga Europa, com seus 48 participantes. A Uefa prometeu detalhar os critérios de todas as vagas para a Champions e a Liga Europa até o final do ano.
Adivinha? Dinheiro, claro. Se tem uma coisa que investidor e patrocinador odeiam é incerteza, e a rodada de playoffs oferecia essa incerteza. Agora, está garantido que pelo menos metade da fase de grupos da Champions League terá equipes com o potencial comercial das principais ligas do mundo. Segundo a ESPN americana,um dos clubes envolvidos nas negociações acredita que essa mudança pode gerar 20% a mais de receita por temporada.
Mas vai além disso. Clubes espanhóis, italianos e alemães estão preocupados com o atual contrato de TV da Premier League, o maior da história do futebol, e precisam sugar mais dinheiro das competições europeias para poderem competir de igual para igual com os ingleses, ou, pelo menos, para não perderem jogadores para equipes que brigam contra o rebaixamento na Inglaterra.
Aproveitaram um momento de fragilidade na Uefa para defender seus próprios interesses. Querem ter a certeza de que participarão da fase de grupos e, portanto, terão seis jogos na TV e três em casa; saber com antecedência que haverá um calendário europeu mínimo de três a quatro meses para fazer o planejamento; e querem aumentar as receitas de um modo geral.
A Uefa não tem um presidente, depois que começaram a surgir os conflitos de Michel Platini com a honestidade. O secretário-geral Gianni Infantino foi eleito presidente da Fifa. Quem sobrou na sede de Nyon para pagar a conta de luz no fim do mês foi o secretário-geral interino Theodore Theodoridis. Novas eleições serão realizadas em setembro.
Diante desse cenário, os principais clubes europeus ameaçaram boicotar a Champions League e criar um torneio paralelo. Lembra a ideia da Superliga Europeia?A Uefa levou a ameaça a sério. E o ranking histórico para proteger gigantes em má fase,como Manchester United,Liverpool e Milan? Também foi levado a sério. Os clubes chegaram a discutir com os negociadores da entidade partidas no final de semana, para reforçar as receitas, e divisão igualitária dos lucros nas competições europeias.
A mudança acabou sendo uma concessão para evitar o que, sob a ótica da Uefa, poderia ter sido um desastre muito maior.
O que isso significa?
Faça chuva ou faça sol, metade dos clubes da Champions League virá de apenas quatro das 55 federações nacionais da Europa. E como é enorme (15 pontos) a diferença de coeficiente entre a quinta colocada do ranking, a França, e a quarta, a Itália, é seguro afirmar que durante um bom tempo metade dos participantes da Champions virá de Espanha, Alemanha, Inglaterra e Itália.
Em termos simbólicos, é horrível porque a competição fica ainda mais descaracterizada. O que surgiu como um palco onde se enfrentavam os campeões nacionais de todos os países da Europa fica mais parecido com um clube exclusivo que concede acesso a quem tem cartão de crédito de platina e apenas tolera a presença do resto, em nome das boas aparências. A ampliação para receber segundos, terceiros e até quarto colocados era inevitável e foi bem-vinda para a competitividade do torneio, mas tem que haver um limite. Ainda é a Liga dos Campeões da Europa e não a Liga-Hispano-Germânica-Ítalo-Inglesa.
Há um problema de desequilíbrio na Champions League, do qual já tratamos várias vezes. Barcelona, Real Madrid e Bayern de Munique chegaram à final das últimas oito edições, venceram as últimas quatro e são presença quase certa nas semifinais. Depois do sorteio da última quinta-feira, eu coloco meu dinheiro em 15 dos 16 classificados às oitavas de final. Em teoria, os times favorecidos pela mudança de regras teriam mais predicados para combater os grandes. Parece óbvio que o Arsenal pode chegar mais longe que o Bate Borisov. Ou que a Internazionale, mesmo em má fase, é uma pedra no sapato mais incômoda que o Rostov.
Na prática, a introdução da Rota dos Campeões na fase preliminar, que abriu espaço nos grupos para campeões nacionais de países de terceiro ou quarto escalão para baixo, em detrimento de terceiros e quartos colocados da elite, teve pouco impacto técnico na competição.Mas digamos que essa nova medida da Uefa, que serve como uma vacina para a Rota dos Campões, de fato aumente o equilíbrio da Champions. A que custo isso aconteceria?
Porque, ao mesmo tempo em que poderia haver uma aproximação entre os financeiramente gigantes – Barça, Real, Bayern, Manchester City, Manchester United, PSG – e os grandes da Europa, haverá um distanciamento ainda maior entre as ligas de elite da Europa e o resto do continente. Apenas quatro países terão metade das vagas da Champions para aproveitar a grana de bilheteria, televisão e premiação que a competição oferece. Pode ser que outros clubes ingleses, espanhóis, italianos ou alemães comecem a aparecer nas fases mais agudas? Pode. Mas as chances de portugueses, franceses (com exceção do PSG), russos, ucranianos ou holandeses fazerem alguma graça ficam ainda menores.
Claro que a Rota dos Campeões foi uma politicagem de Platini para agradar federações menores da Europa e garantir mais votos. Não acho que deveríamos ficar surpresos que políticos fazem politicagens. Deveríamos avaliar os resultados dessas medidas. No caso da em questão, independente da motivação, serviu para aumentar a representatividades de países na Champions League e compor um torneio mais democrático. Considero um bom resultado. Lembremos que o Basel, que veio da Rota dos Campeões, eliminou Manchester United e Liverpool em anos recentes. O Apoel, outro da Rota dos Campeões, chegou a eliminar o Lyon.
A origem do atual desequilíbrio do futebol europeu não é a Champions League. São as ligas nacionais, nas quais o Bayern de Munique é comercialmente superior demais aos seus concorrentes. Nas quais Barcelona e Real Madrid conseguiriam comprar quase todos os outros clubes espanhóis se fizessem algum esforço. Nas quais o Paris Saint-Germain e a Juventus passeiam pelos campeonatos sem adversários. Nas quais a Premier League consegue um contrato de televisão sem precedentes.
A Champions League apenas reúne o produto final de tudo isso e tem pouco poder para influenciar o problema. Poderia, por exemplo, dar mais dinheiro para os clubes que participam das fases preliminares e da fase de grupos ou usar os milhões que têm em caixa para de fato desenvolver o futebol nacional de países periféricos. Essas medidas que estão prestes a entrar em vigor, no entanto, só mantêm o dinheiro europeu onde ele já está: na Espanha, na Alemanha, na Inglaterra e na Itália.